Adoro esse poema do Manoel de Barros. Ele fala de várias coisas importantes para o fotógrafo. Ele descreve uma cena de fotografia de rua. Além de bonito, ainda me faz pensar no ofício com mais profundidade e calma.
A observação calma e analítica: “Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado”…”O silêncio era um carregador?”…”Representou para mim que…”
Desafios são atrativos: “Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei.”
Variedade é estratégia:
- Fotografei esse carregador.
- Fotografei o perfume.
- Fotografei o perdão.
- Fotografei o sobre.
- Fotografei a ‘Nuvem de calça’ e o poeta.
Atenção aos detalhes: O silêncio, o bêbado, a rua, o perfume, a lesma, os olhos do mendigo, a paisagem velha, o sobre, a nuvem de calça
A observação do próprio ofício: ele descreve o tempo todo, o modo de pensar enquanto fotografa. Importante desenvolver essa consciência visual e do ato de fotografar.
A buca pela fotografia do imaterial:
- O silêncio
- O perfume
- A existência dela (da lesma)
- O perdão
- O sobre
- A “nuvem de calça”
Mas a minha expressão predileta nele é “Entretanto tentei”. Mas é um poema cheio de lições e inspirações. Leia (e releia), em voz alta e lenta.
O fotógrafo
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a ‘Nuvem de calça’.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakowski – seu criador.
Fotografei a ‘Nuvem de calça’ e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.
Manoel de Barros, em “Ensaios fotográficos”.
Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.
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